Culto dos Antepassados - Magia Chinesa

Iniciado por Athena, Março 09, 2017, 20:25:32

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Athena

O culto dos antepassados na China remonta, como na maior parte das culturas e civilizações, aos primitivos tempos da humanidade, com um papel de destaque nas práticas animistas.

Como noutras sociedades primitivas agrárias, dependentes da sobrevivência, da vontade desconhecida da natureza e dos elementos, também no território onde se fundou a China, a religião se centrava no culto dos antepassados, nos rituais da fecundidade, na adoração dos espíritos que acreditavam controlar as forças da natureza.

A prática do culto dos antepassados, na China, começa a estruturar-se a partir do segundo milénio antes de Cristo (aceita-se como marco de entrada da China na era da história a Dinastia Shang) até finais da Dinastia Han, a par com o desenvolvimento de conceitos religiosos e filosóficos como o taoismo e o confucionismo.

Atribui-se ao Duque ed Zhou (1122 a.C. a criação dos ritos com vista a estruturar comportamentos quer na administração do Estado, quer no campo da ética e da moral, do comportamento individual dos cidadãos, nas práticas e sacrifícios relacionados com cultos da vida e dos antepassados. Serão, contudo, Confúcio (551-479 aC.) e os seus seguidores a fixarem em texto, uma releitura dos ritos de Zhou, no Livro dos Ritos um dos Cinco Cânones de Confúcio.

O culto dos antepassados entre os clãs foi (é) a base onde assentam hereditariedades que fundamentam poderes e dinastias, linhagens guerreiras, administrativas ou terra tenentes, interesses a todos os níveis da sociedade, e até a estatutos que concedem lugares no panteão das divindades.

A comunidade dos vivos e dos mortos

Para as comunidades primitivas vivos e mortos partilhavam o mesmo espaço, cabendo aos antepassados mortos o papel de zelar pelo bem-estar dos descendentes vivos que passava, obviamente, pela reprodução e seu sustento, provendo as necessidades da alimentação pela fecundidade dos campos e animais, as boas caçadas, e as vitórias sobre grupos inimigos.

Durante a Dinastia Shang (c. 1750 – c.1050 A.C. – Idade do Bronze) desenvolve-se uma civilização na bacia do Rio Amarelo cujas descobertas arqueológicas demonstram que parece ter estabelecido relações com outros povos de regiões bem distantes na China, e até com culturas ocidentais que terão contribuído com técnicas de olaria e fundição do bronze.

Com a criação de riqueza nasce uma classe nobre e urbana em paralelo com os camponeses que trabalham campos e criam animais.

No seio daquela nobreza desenvolveu-se uma religião, em que o culto dos antepassados teria sido a principal prática. A caça e a guerra criavam relações de amizade e de solidariedade, cimentadas em momentos de glória e de prazer. Em vida e na morte.

Quem acompanhava o rei em vida seguia-o para a outra vida onde as mesmas glórias e prazeres teriam lugar. Assim, por baixo das câmaras fúnebres dos reis, encontraram-se as ossadas de nobres, esposas, concubinas, criados, jovens e de animais, normalmente cavalos e cães de companhia e de caça, que acompanhavam os monarcas para o outro mundo.

Este ritual só se altera na dinastia seguinte (Zhou, ou Chou, de c.1050 a 221 A.C. a mais longa dinastia da China), atribuindo-se ao célebre Duque de Zhou a constatação de que se os corpos viravam terra, qual o problema de o morto se fazer acompanhar por estátuas de pessoas e animais, de barro ou de bronze? No outro mundo, tal como nos sonhos, a uma ordem do falecido tudo se transformará em seres viventes ao seu serviço.

Embora alguns poderosos tivessem continuado com as práticas antigas, o primeiro imperador da Dinastia Qin (221-206 a.C.), e reunificador da China, Huangdi (259-210 aC.) construiu o fantástico mausoléu hoje conhecido como o dos guerreiros de terracota em Xian. Contudo se não fora sacrificado todo aquele exército, o mesmo não aconteceu em relação aos seus construtores, a todos os níveis da hierarquia, que foram executados, mas por outros motivos, já que o que estava em causa não era o serviço na corte do além, mas impedir que alguém no lado de cá soubesse dos segredos da sua construção.

A prática continuou pelas dinastias seguintes variando as tumbas dos grandes em tamanho e estilo, mas mantendo-se a tradição de viajarem, para o além acompanhados dos seus objectos pessoais e servidores figurados em cerâmicas, bronzes, ou outros materiais.

Entre o povo se manteve desde sempre a prática, embora os objectos pelo poder económico de cada um fossem mais pobres em arte e materiais, sendo o papel sempre o mais usado. E como quem nesta vida nada tem, por falta de condições para ter, pode sempre na outra, já que é em tudo semelhante a esta, ter uma vida melhor se os objectos que o acompanham, ou que lhe são enviados, forem os que nunca teve, mas que sempre ambicionou.

Espírito e corpo

Começou por se acreditar que depois da morte o espírito continuava ao lado do corpo, já que era essa a sua residência habitual durante a vida. Só quando o corpo se degradava é que o espírito era obrigado a deixá-lo. Assim preservar o cadáver o mais tempo possível era uma obrigação, não só para que o espírito continuasse a viver junto ao seu corpo conservando a sua identidade, mas, também, porque só assim os espíritos dos antepassados podiam zelar por todos quantos de si descendiam.

Para a nobreza, porém, a visão do espírito passou a ser diferente do da crendice popular para quem o espírito acaba por ser absorvido pela terra. Para a nobreza os espíritos dos antepassados habitavam as alturas, como seres poderosos e divinos. Ou seja, os reis e os membros importantes da corte depois de mortos, ao mesmo tempo que habitavam nos seus túmulos, também habitavam no céu.

É neste entendimento que se baseia a crença que mais tarde defende a existência de duas almas no ser humano, a hun que na morte se tornava shen e partilhava a natureza do céu, e a p`o que se transformava em kuei e era terrena por natureza.

E é aqui, também, que se começa a desenhar toda a hierarquia da religião popular chinesa na atribuição de características divinas a reis, imperadores, generais, cujo espírito lhes dá o estatuto e, por outro lado a continuidade de uma religião de Estado, por ele gerido e organizado à sua imagem e semelhança, na estrutura palaciana e administrativa, de crescentes graus na hierarquia, transpostos para o Estado do céu.

O Ching Ming (清明節)

O Ching Ming (ou Cheng Ming, Cheng Meng ou Qingmin) o 5.º dos 24 termos do Calendário Solar Chinês é a mais importante data do calendário ritual, em que as famílias celebram o culto dos antepassados. O Festival tem lugar no 106.º dia depois do Solstício de Inverno ou, sem ter que contar tanto, no 15.º dia depois do equinócio vernal da Primavera (Chunfen), assinalado no calendário solar chinês, a 20 ou 21 de Março pelo que calha nos dias 4 ou a 5 do mês de Abril. Neste ano de 2013 a data comemora-se no dia 4 de Abril.

O Ching Ming é o primeiro dos cinco maiores festivais chineses do Calendário Lunar, a que se seguem o Yu-Lan Pen, ou P`u-tu (Festival da Salvação Universal), o Festival dos Espíritos Esfomeados (15.º dia da 7.ª Lua), o Festival das Lanternas e o de Chong Yeong.

O seu nome chinês, traduzido à letra, significa "claro e brilhante" marcando o tempo primaveril que, embora hoje seja irregular, noutros tempos era marcado pela luz do Sol e o seu brilho. Daí as diversas designações do Festival de Ching Ming, como "Claro e Brilhante", "Suprema Claridade" e do "Puro Brilho". Pela prática ritual que marca, também se designa como Dia dos Antepassados, ou dia de varrer (limpar) sepulturas. Em Macau é conhecido, também, como o dia de finados chinês.

Podemos dizer que o culto dos antepassados é a verdadeira religião chinesa, já que todas as outras vieram do exterior e, mesmo o Confucionismo e o Taoismo – filosofias que em determinadas épocas assumiram estatutos religiosos – trataram as questões relacionadas com a morte e os antepassados de formas diversas ou difusas.

O Confucionismo acabaria por abraçar a veneração dos ancestrais, como parte integrante da piedade filial, a sua grande virtude!

A família é a unidade, daí a importância dos antepassados. Confúcio terá dito que enquanto os pais são vivos, devem ser tratados de acordo com um conjunto de cerimónias, ritos e modos, tal como quando morrem devem ser enterrados de acordo com essas normas, e venerados depois no além, respeitando-as.

A importância de um filho varão nas famílias chinesas é a garantia de que os pais terão quem trate deles na eternidade.

Rituais

O Ching Ming (ou Suprema Claridade) leva os chineses a dirigirem-se para todos os locais onde descansam os seus defuntos e os espíritos dos antepassados, para lhes prestarem homenagem e culto.

As famílias limpam e lavam as campas dos seus, batem cabeça e fazem oferendas. Acendem-se pivetes de incenso e queimam-se objectos variados de papel (automóveis, telemóveis, televisões, câmaras fotográficas, entre outros e imitações de dinheiro), para que no outro mundo os antepassados os recebam, e com eles sejam felizes.

A seguir fazem-se as ofertas de comida com leitão assado, bocados de cha shiu, galinha a vapor, ovos cozidos, pratos com frutas e outros acepipes, a que se juntam três taças de vinho e três conjuntos de faitchis, que são colocados sobre a laje da campa.

Com o copo de vinho na mão o chefe de família curva-se três vezes perante a campa, atirando o vinho parta o chão, acto que repete por três vezes. Os restantes familiares, com a mão direita fechada coberta pela esquerda, fazem três vénias perante a campa do antepassado.

A comida oferecida, regra geral, será pasto para um piquenique dos presentes em alegre convívio com os ausentes, o que para além do mais é visto como um acto de traz boa sorte aos participantes.

O ritual termina com a queima de panchões e a colocação de um papel encarnado na pedra tumular, a avisar que aquele defunto já foi homenageado pelos seus familiares e não é um desgraçado, cujo espírito se separará para sempre do corpo por não ter quem o venere.

O Ching Ming em Macau

Ocasião de reunião familiar que demonstra bem o conceito chinês de continuidade para além da morte e de estreito relacionamento com os defuntos, e de piedade filial, o Ching Ming é vivido em Macau como em toda a China, e em qualquer lugar de fixação chinesa.

Os familiares, vindos por vezes de muito longe (tal como no Ano Novo Lunar), juntam-se ao clã e visitam os vários cemitérios onde jazem os seus antepassados, dentro da cidade de Macau, nas colinas das ilhas e nas regiões vizinhas do Guangdong, ou de Hong Kong. Também os que residem nestas regiões e têm os seus antepassados em Macau aqui afluem para visitarem as suas campas e lhes prestarem culto. A Azáfama é grande na compra das oferendas com destaque para o leitão assado que fazem com que as fábricas que se dedicam ao mister trabalhem ininterruptamente por vários dias. As fronteiras congestionam-se como o fluxo contínuo de viajantes em todos os sentidos.

Desde sempre foi assim em Macau, pois é terra de gentes oriundas das mais remotas terras da China, e das comunidades chinesas do sudeste asiático.

A interculturalidade e a multiculturalidade vivida em Macau, A liberdade religiosa, e a forma não ortodoxa da vivência do cristianismo entre a comunidade chinesa – é preciso não nos esquecermos que o decreto do enviado Papal, Charles Tournon sobre a Questão dos Ritos confucianos do culto dos antepassados (1707) nunca aqui foi publicado, nem seguido –, proporciona situações características do culto nesta terra, que poderão parecer estranhas aos que desconhecem todas estas realidades.

Assim, para além dos rituais normais do Ching Ming em todos os cemitérios chineses de Macau e das Ilhas, também nos cemitérios municipais, maioritariamente de origem católica, se podem observar práticas relacionadas com o culto dos antepassados, na deposição de flores, e no "bater cabeça".

*Historiador, Mestre em Relações Interculturais

https://pontofinalmacau.wordpress.com/2013/04/04/culto-dos-antepassados-festival-ching-ming/
A religião do futuro será cósmica e transcenderá um Deus pessoal, evitando os dogmas e a teologia.
(Albert Einstein)